Sumiram com a gordura trans!

8:43 AM

Acabei com minhas pretenções de tornar-me uma escritora ainda na adolescência em uma das minhas tentativas de escrever um livro nas férias escolares. Desse modo, nem mesmo a redação do vestibular ousei fazer a narração. Optei pela dissertação que continuo empregando até hoje, afora os meus textos jornalísticos. Mas não pensem que isso deixou alguma espécie de trauma, muito pelo contrário, sei apreciar o valor dos leitores. Afinal, eles talvez sejam, a grosso modo, a finalidade da obra.


Tá, mas o fato é que ontem acordei com uma historinha na cabeça e decidi escrevê-la. Sai jogando as palavras para não perdê-las. Sei que não se deve tratar assim as palavras. Elas devem ser pensadas, buriladas, maturadas, mas não podia perder essa oportunidade de um lampejo criativo em minha mente.


Assim, divido com vocês o resultado e peço que perdoem-me qualquer falta grave, pois estou bem enferrujada nessas narrativas ficcionais.


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[Sumiram com a gordura trans!]




Ela acordou num salto. Deve ter sonhado com isso. Estar no seu subconsciente. Agora não lembrava, mas persistia aquela idéia fixa. Correu para a cozinha. Abriu a geladeira, procurou e não encontrou. Foi até o armário, revirou tudo e também nada. O último lugar que restava procurar era a dispensa. Mexeu nos pacotes, nas latas, nas caixas... Tinha que estar em algum lugar.


Voltou ao quarto, pegou uma calça jeans e a camiseta que tinha usado no dia anterior. Jogou por cima do corpo e saiu para o supermercado. O coração saltava enquanto vistoriava prateleira por prateleira.


[Ahhhhhhh] O grito seco ficou preso na garganta. Ela continuou uns segundos parada, estática com o pacote de margarina na mão. Na embalagem dizia: “Mais saudável. 0% de gordura trans”.

Não podia ser. Há poucos meses, praticamente tudo que era consumido continha a tal da gordura trans. É certo que ninguém ou quase ninguém tinha conhecimento da sua existência, mas de repente estava em todos os jornais, em todos os programas de TV e foi revelado para toda a população: a gordura trans era a vilã da saúde e teria que ser riscada do mapa. Mas como assim? Tão rápido? De repente não há mais gordura trans no mundo? Para onde ela foi?


A dúvida a deixava inquieta, confusa, sentiu-se fragilizada. Os passos que a levaram até em casa foram pesados. Estava cansada, sentia um grande peso sob os ombros, uma desilusão. Ao chegar, abriu a porta, viu o telefone na mesinha e ligou para o primeiro SAC que encontrou numa embalagem na cozinha.


- Bom dia, meu nome é Aline em que posso ajudar?
- Alô. Eu preciso uma informação. Onde está a gordura trans nos produtos de vocês?
- Senhora, qual o nome da senhora?
- O meu nome? É Débora. Mas eu quero saber é da gordura trans.
- Senhora Débora, a senhora está me dizendo que encontrou gordura trans em nossos produtos?
- Não, quero saber onde ela está, o que vocês fizeram com ela.
- Senhora, ainda não entendi o seu problema, senhora. De qual dos nossos produtos a senhora se refere?
- A qualquer um deles.
- Senhora, em qual produto ocorreu o problema?
Ela olhou para o pacote em suas mãos e respondeu:
- Estou aqui com o biscoito Bom de Mais.
- Qual sabor senhora?
- Leite.
- Então, a senhora afirma que encontrou gordura trans num pacote do nosso biscoito Bom de Mais sabor leite. É isso, senhora?
- Não, não é isso.
- Senhora, eu vou levar o seu problema para o meu supervisor. Aguarde um momento, por favor.


Agora, seus ouvidos foram tomados pela composição de Beethoven, "Pour Elise", tã, nã, nã, nã, nã, nã, nã, nã, nã, na... O pacote de biscoito já começava a suar em sua mão quando a atendente retornou à ligação.

- Alô, senhora Débora, obrigada por esperar. Eu passei o seu problema para o meu supervisor e, diante da gravidade da sua reclamação, estaremos enviando um técnico químico em sua residência para avaliar o produto. A senhora concorda?
- Sim.
- Então, a senhora poderia me dar os seus dados para que possamos proceder? Nome completo, endereço, telefone para contato... Obrigada senhora. O nosso técnico estará indo a sua casa ainda pela manhã, tudo bem, senhora Débora?
- Sim.


Apesar da ligação, o peso continuava. Ela ficou sentada no chão ao lado da mesinha do telefone. O pacote já estava suado em sua mão. Sua mente divagava sobre as possibilidades quanto ao paradeiro da gordura trans. Lembrava que as reportagens alertavam para o perigo, mas também afirmavam que ela era a responsável pelo gostinho irresistível, pelo cheiro arrebatador, pela vontade de comer mais. Se de fato era assim, como retiraram a gordura trans e os produtos continuavam aparentemente normais com mesmos sabores, aromas e texturas? Havia algo de muito errado aí, ela sabia. Por alguns minutos ficou ali, pensando. A fome já dava seus primeiros sinais quando a campainha tocou.


- Bom dia. É a senhora Débora? Meu nome é Carlos, sou técnico da empresa alimentícia. Vim ver o produto em que a senhora encontrou irregularidades.
- Não é bem uma irregularidade.
- É esse aqui na sua mão?
- É sim, mas há outros também...
- Outros? Não havia sido informado. Será que foi um problema em todo o lote? Assim teremos que fazer um recall. Mas diga-me, como a senhora detectou gordura trans em nossos produtos? A senhora é química? Trabalha no Inmetro? Fez algum teste?
- Não. Eu sou corretora de seguros.
- Corretora? Então, como a senhora detectou gordura trans no nosso produto?
- Eu não encontrei nada. Eu só queria saber o que aconteceu com ela já que nos rótulos está estampado 0% de gordura trans.
- Mas a senhora ligou para nosso serviço de atendimento reclamando que havia gordura trans no biscoito Bom de Mais sabor leite.
- Não foi bem assim.
- A senhora se importaria de me ceder a amostra do biscoito em questão?
- Uma amostra?
- Sim, disse, pegando o pacote das mãos de Débora. Nós lhe manteremos informadas sobre o resultado de nossos testes.


Foi dado início a uma série de rigorosos testes, mas nada era comprovado e ao que parecia, não havia gordura trans nos produtos. A questão já havia tomado enormes proporções, alegando-se ser um tema de saúde pública. Os noticiários estavam em polvorosa com a possibilidade de fraude da empresa, de uma intoxicação generalizada ou mesmo de a gordura trans ser encontrada em outros produtos de outras empresas.


Débora não entendia o que estava passando. Apesar de falar, falar e falar, os outros pareciam não entender o que ela dizia. Ao que parece não havia problemas com o biscoito, mas com a consumidora do biscoito. O acesso de histeria fez com que as autoridades enviassem, dias depois, uma equipe à residência de Débora. Ela tentou relutar, argumentar, mas de nada adiantou. Sem ter como resistir, foi levada ao manicômio da cidade, a fim de ser tratada, pois ela estaria sofrendo de alguma espécie de transtorno obsessivo compulsivo relativo à gordura trans.


O ritmo da sociedade foi normalizado e as pessoas já estavam entretidas com alguma outra manchete espetacular, enquanto que Débora permaneceu internada e sem sinais de melhoras. A obsessão continuava. Sempre que um alimento chegava as suas mãos ela lia, relia os rótulos a procura da gordura trans. Não apresentava comportamento violento, estava sempre calada, sozinha, mas nada parecia surtir efeito, já havia sido sedada, participado de terapia em grupo e mesmo individual. Ela seguia com o olhar perdido, pensamentos desconcatenados. Até que chegou o dia em que ela não mencionou as tais gorduras trans. Todos ficaram surpresos no manicômio. Ela comeu biscoito, passou margarina no pão sem falar absolutamente nenhuma palavra sobre o assunto. Diante da espantosa recuperação, os médicos lhe deram alta.

Estava uma típica manhã de verão, mas ela parecia mais luminosa para Débora. Com uma pequena mala na mão, ela saiu caminhando lentamente. Esforçando-se para focar a visão em tudo que via, numa placa, num carro, numa casa. Procurava um ponto de ônibus quando avistou uma sorveteria. Resolveu parar e se refrescar para comemorar a sua saída. Sentia-se livre e nada melhor do que um sorvete para lavar a alma e recomeçar a vida. Aproximou-se do balcão e leu atentamente os nomes dos mais de 50 sabores oferecidos. Eram variados: os tradicionais chocolate, creme e morango; os de fruta como limão e cajá; e outros com nomes esquisitos que levavam castanhas e suspiros; havia até de caipirinha...


- Meu Deus!, pensou.

Fez outra busca atenta, observou os clientes entrando, saindo, fazendo seus pedidos. Havia voltado o peso. Então, virou-se para o atendente e perguntou:

- Você não tem com sabor de gordura trans?

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